Tudo aquilo que nos cruza, nos constrói.
Antes de nascer na terra, vamos escolher nossa cabeça na casa de Àjàlá, a divindade primordial responsável pela criação das cabeças. Para nascer é preciso escolher entre muitas cabeças-destinos a cabeça do nosso caminho. A cabaça-cabeça que contém as sementes que serão germinadas. Destino é semeadura de percurso e experiência vivida. Não é racionalizável, mensurável e fixo, mas sentido e percebido. E os sentires e perceberes são matérias líquidas, maleáveis. Portanto, o destino é mais barro do que tijolo. Podemos desfazer e refazer. O mapa astral não é coisa rígida, parede. É uma tecnologia anciã para viajantes do futuro, pois somos viajantes do futuro. Nele encontramos conhecimento sobre o que nos atravessa e concebe. Ele não fala de dor, sofrimento, mas não romantiza a vida. Fala de uma ligação cosmologica fundamental de sermos seres em pacto com a terra, fogo, água, ar e suas inteligências. Nos localiza cosmosensivelmente na terra, o planeta, e terra, Onílé. Oráculos ritualizam e tornam sagradas as relações entre seus elementos materiais e simbólicos. Você escolheu uma cabeça, um ascendente, que traz um enredo. Você escolheu um Sol, um destino que deve ter. Mas sobretudo, escolheu um mapa, que é o destino que aprendemos ser o nosso. E isso fazemos caminhando.
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A astrologia é uma forma de ler o mundo.
Mas toda linguagem é carregada de valores sociais, construídos simbolicamente pela cultura que a manuseou e redefiniu seus fundamentos. A astrologia não surgiu “do nada”, ela possui uma história, porém tremendamente fragmentada. E nessa trama de romantizações e amnésias é tarefa árdua reconstruir sua memória: o que veio antes da historiografia oficial. Já falei por aqui que essa tecnologia foi utilizada pela colonialidade, vide seu discurso eugenista e racista em Vettius Valens e quando foi utilizada para justificar que povos originários do sul global nasceram sob um céu que os condenava à mentira, lascívia e subalternidade. A convicção de que a visão de mundo ocidental é o centro de tudo, e as demais compreendidas a partir desse modelo, é uma doença branca, o Yurugu pensado por Marimba Ani. Eis o porquê de trabalhar o território da memória na astrologia. Mas como diz Cida Bento, memória não é apenas recordação ou interpretação, mas também revisão da narrativa sobre um passado “vitorioso” de um povo, revelando e fazendo críticas aquilo que as sociedades escolhem esquecer, apagar ou inventar. Venho buscando desvinculá-la do padrão epistêmico ocidental como única referência. E como forma de desobrigar o eurocentrismo, comecei a dialogar com outros saberes, mitologias, e pensar outras formas de ler o mundo a partir de quem veio antes do ocidente se configurar ocidente para construir contranarrativas. Isso não é torná-la uma Astrologia dos Orixás, que são divindades primordiais Iorubás, comunicam-se nos búzios, dentro da ritualística e tradição do candomblé, por exemplo. Seus itan são narrados na tradição oral de Ifá, codificados iniciáticamente nesse corpo-filosófico-religioso e nele se apresentam em magiação conduzida por ikins e opelé. É sobre o que as cosmosensibilidades de Ifá podem ensinar para a Astrologia e ajudá-la a fazer crítica ao eurocentrismo, e menos sobre o que a Astrologia em seu atual estado de sucateamento pode solitariamente produzir enquanto ferramenta de orientação. Defendo ouvir e aprender com quem veio antes para contribuir na emergência (urgente) de outras perspectivas em sua prática. Em um mundo marcado pela comoditização da arte e artificialização do sensível, onde tudo é tão apressado, e o acesso ao mercado (leia-se ayé ni ojà) de circulação de conhecimento excluiu de Exu Oloja a centralidade das trocas, questiono se há ainda espaço para uma relação espiritual com a criação. Ainda vigora um contrato não escrito onde o sofrimento é valor e mérito para a arte e o artista. O ocidente gosta de romantizar a dor e dar cabeça ao sofrimento.
Obatalá é o primeiro artista, a ele foi confiada a arte (ona). Em seu ateliê recebia de Yemanjá a água trazida todos os dias por um hipopótamo. Com a água, elemento mais antigo que há, hidratava a sua massa para moldar os corpos dos seres que iriam nascer no Aye. Yemanjá temperava seus animos, orientava sua criação e o protegia de influências negativas, para que não desviasse sua atenção da tarefa e não criasse coisas que não coubessem no mundo. Sua obra, todavia, não seria pendurada ou socializada em vitrines e galerias. Nós somos suas criações, temos a água no nosso corpo também, somos interlocutores e continuadores dessa criação que nunca termina. Não deveríamos pendurar o nossa criatividade e sensibilidade na parede, delimitar até onde deve ir e retirar seu sopro vital em caixas de acrílico. Antes de me comunicar pela astrologia, eu tecia diálogos com imagens. Pintava com tesouras nas colagens, e foi exatamente aí que o meu contato e conexão com a orixalidade se estabeleceu. Tudo começou com uma criação misteriosa que depois fui reconhecer como Nanã, a senhora do barro primordial, a tal massa que Obatalá moldou, e cuja água Yemanjá forneceu como narra um Pataki. Mesmo distante dessa linguagem, a astrologia me trouxe outra forma de comunicar, e com seus símbolos e montagens, sempre misteriosas, fez-se de tela para compor novas colagens e contar histórias. Há três florestas que quando se encontram alimentam o mundo
e permitem a caminhada da vida Há nas três florestas um som um cheiro e muitas sensações que alimentam o corpo e permitem que a vida caminhe Tum tum tum tum tum tum tum Shh, shh, shh, shh, shh, shh, shh, shh Clap clap clap Clap clap clap clap clap clap clap Nas três florestas o único sentido que não usamos é a visão. Porque do mistério precisamos Porque guardamos segredo Para que a vida continue a caminhar A vida caminha na floresta onde o mais velho pisou O mais velho caminha na floresta onde Duzentos chegaram, duzentos mais um Há 16 marcas deixadas por um na floresta E duzentos e cinquenta e seis caminhos por onde a vida passa, jovem e velha Uma das grandes transformações que eclodiram em mim ao conhecer e me iniciar em Ifá foi a noção de família e comunidade. Seja no grande útero que forma um ẹgbẹ, seja na percepção de que a nossa existência é cruzada por três florestas, três igbo: o bosque dos ancestrais, dos Orixá e aquele onde conhecemos e nos harmonizamos ao nosso destino escolhido através do Odu. Destino que é feito de compromisso, maleabilidade, autocuidado e responsabilidade. Quando falo sobre o mapa enquanto cabaça do destino, penso no fruto guardando suas sementes, como o mapa contendo seus planetas, aspectos e histórias. Histórias que não começam conosco, mas a partir do que foi colocado dentro por nossos ancestrais, aquilo que foi colocado dentro por Olódùmarè e as escolhas, aquilo que podemos fazer com essas sementes. A astrologia é ferramenta de memória e lembrança quando canta a cantiga de sementes, de potências que temos e que podemos ativar, caminhos que cruzam nossa experiência de chegada. Toda vez que olharem seus mapas, ou apenas o sol, a lua, ascendente, pensem nos seus irmãos, pais, avós, pensem nos tataravós, e nas pessoas que lhes acompanham na travessia existencial pelo aye. Aqueles que vem lembrar, e refrescar nossa cabeça dizendo, "venha, nos mostre seus dons", "você está no caminho certo", “queremos sua companhia’. Xangô gostava muito de viajar para terras vizinhas para conhecer os costumes e ritos dos povos e como viviam. Em uma de suas peregrinações ele chegou a uma terra que se chamava Ara-Male. E Xangô foi logo rendendo moforibale aos habitantes como se fazia em seu reino, mas observou que eles faziam de outra forma. Os Ara-Male tinham uma grande devoção a Olorun, sob a forma do Sol. E logo no raiar do dia todos se levantavam e guardavam jejum até o meio-dia realizando uma cerimônia que consistia em pedir bençãos a Olorun.
Todos se reuniam ao redor de uma cabaça contendo Saraekó, uma espécie de mingau que para eles representava o desjejum e o almoço. Tempos depois, Xangô retornou a terra de Ara-Male e viu a grande harmonia e tranquilidade que tinha seu povo. Isso lhe fez pensar nos problemas que há muito afligiam Takuá, uma terra que vivia em guerra com todas as vizinhas, e que por consequência dos conflitos cada vez mais intensos seu povo não tinha paz e não realizava mais cerimônias para seus Orixá, Ancestrais e Olorun. Inspirado pelos ritos dos Ara Male, ele recolheu a cabaça do Saraekó e levou consigo até Takuá. Lá chegando, reuniu todo o povo e explicou a eles a necessidade de realizar a cerimônia do Ñangareo, e que todos deveriam reverenciar não apenas Olorun, mas também aos seus antepassados. Os mais velhos foram então buscar terra e areia para apoiar a cabaça e um a um, dos mais velhos aos mais jovens, todos iam rogar a Olorun e aos presentes. A partir desse momento, a tranquilidade, a paz foi retornada a Takuá e em todas as terras Yorubás. Lara Sayão fala no prefácio de Filosofias Africanas de Nei Lopes e Luis Simas que o pensamento ocidental perdeu a noção do que é comunidade nessa corrida louca por títulos que denominamos conhecimento. Vou além: o paradigma ocidental nunca teve em seu projeto colonialista/capitalista/patriarcal qualquer compromisso com o comunitário. Fracassamos enquanto sociedade, mas podemos caminhar para um outro lugar de sociabilidade. Precisamos de Saraekó, de Xangô, do pensamento e cosmosensibilidades do sul global, que nos mostram como resolveram há milhares de anos crises sistêmicas com encruzilhada, palavra encantada e xirê. A astrologia primordial nos fala a partir de sua cosmosensibilidade sobre como podemos realizar um compromisso com o nosso destino: O compromisso com a terra e sua dimensão ancestral, do equilíbrio do corpo e da sustentação através da alimentação coletiva. Com a água e a dimensão da memória, cura e espiritualidade. Com o ar e a dimensão aquilombada e circular da feitura e troca de conhecimento. Com o fogo e a dimensão da criação, das transformações coletivas, avanços.
A relação entre nós, o nosso mapa e a nossa chegada a terra está no plano cosmológico, que inclui todos aqueles que vieram antes de nós, o cosmos criador e a natureza. Como diz o Professor Luís Tomás Domingos é como a ligação entre uma criança e seus genitores biológicos. A cultura africana nos ajuda a conceber e viver as relações do ser humano com a natureza, ancestrais e mundo espiritual para que não sejam puramente relações técnicas, mas de reciprocidade, participação e complementaridade. Esta é a desobediência e desvio que venho propondo e pensando a partir do meu letramento racial, para enxergarmos e tensionarmos as redefinições que o pensamento branco euroreferenciado trouxe para este oráculo. A branquitude quer “ter” signos numa relação utilitária, situacional e individualista, não quer Ser o signo e compromissar-se com suas dimensões. Como é para alguns brancos a relação provisória e apropriativa (sempre enviesada pelo racismo e violência) da indumentária afroreligiosa e seus símbolos. É fetiche epistemicida omitir as relações cruzadas do capitalismo/racismo/patriarcado nas transformações de elementos culturais em mercadoria e na conversão de relações de reciprocidade e cooperação em extorsão. Astrologia é mais que um oráculo, é uma tecnologia filosófica milenar que se faz no pacto não com estrelas e planetas, mas com nós mesmos, e quando digo nós, incluo as avenidas da família-ancestralidade, comunidade, espiritualidade e o Ayê-terra, que antes de ser o espaço no qual nos situamos, é uma entidade espiritual. Vocês têm sido capazes de assumir um compromisso com essa potência cosmológica e desviar de uma relação utilitária? |
AutorFelipe Zúñiga: Histórico
November 2022
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